"Penso: Algo tem me olhado direto na
cara. E ainda não sei o que é" (J.M Koetzee, " À Espera dos
Bárbaros"
Acompanhando os protestos e as
manifestações que se esparramam pelo Brasil, muitas são as questões que nos
saltam aos olhos e merecem uma análise mais aprofundada. A título de colaboração, arrisco palpitar
sobre algumas questões que considero importantes. A primeira delas : É
absolutamente impressionante a imensa quantidade de pessoas que se mantém
alheias à questão. Como se isso não fosse problema delas, como se fosse outro
país, ou como se fosse mais uma das novelas que passam na televisão, e essa
muito chata porque não tem romances, nem
"gente bonita". A segunda, é que, de modo mais geral, mesmo entre os
que estão discutindo a questão, o viés é binário e maniqueísta. Vândalos X
Ordem, 20 centavos X 25 bilhões, burgueses desocupados x estado
"democrático" de direito. Para aquele que, como advertia Saramago,
podendo olhar vê, e podendo ver repara, parece muito claro que, parafraseando
Caetano, brasileiros finalmente sentem que alguma coisa está fora da ordem, que
algo se quebrou, está se quebrando. E o que se quebrou foi o mito da
"democracia paz e amor brasileira", sustentado historicamente sobre
as ridículas e falsas bases do país do futuro, do país da integração religiosa
e étnica, do país do povo pacífico e ordeiro, alegre e disposto a morrer de
fome, de raiva e de sede com um sorriso no rosto, desde que morresse chutando
uma bola ou dançando samba. Acabou. Está acabando. O futuro chegou, o país prometido não. Amadurecemos, acordamos
do sonho de Alice. Não se diz que grandes poderes trazem grandes
responsabilidades? Então, é hora de assumir que não estamos cumprindo com as
nossas. Até quando vamos aceitar calados, em nome de um suposto conforto e
desenvolvimento, que nos mantenhamos sempre nos últimos lugares dos rankings de
educação e qualidade de vida em geral, mas ao mesmo tempo em primeiros lugares
nos de corrupção e ineficiência das instituições e órgãos públicos e de
infraestrutura? Os 25 bilhões ( alguém acredita que seja mesmo só isso?), os R$
0,20 centavos, são só a ponta visível desse imenso iceberg que não vemos, mas
que começa a se mover em direção à nós. Rota de colisão inevitável. Crônica de
uma morte anunciada. Não estamos bem. Dizem
que estamos bem. Vá ao mercado e pegue ônibus todos os dias, você verá. Tente
ser atendido pelo SUS. Se viver até lá, você verá. Somos, sempre fomos, uma ilha da fantasia. Perdão
mestre Pessoa, pela apropriação indevida, mas o Brasil é uma doença das nossas
idéias. Não o vemos como é, mas como
querem que o vejamos. Creio que estamos todos acordando desse insano sono. O
Brasil que sonhamos acordado é uma grande Utopia? Ótimo, atrás dela!! Vamos
realizar o possível enquanto corremos atrás do impossível. Como está hoje,
possíveis são 25 bilhões para alimentar ainda mais nossa megalomania alienada.
Impossível é a redução de 0,20 centavos na tarifa do ônibus que transporta o
mundo real todos os dias. Vinte centavos não justificam as manifestações?
Estranho, pois parecem ser justificativa suficiente para se por em marcha os
aparelhos repressivos do estado, dando mostra bem clara de que, para os que aí
estão, atravancando nosso caminho, povo educado é povo calado. O que virá
quando estivermos em marcha pedindo que se aplique 25 bilhões na saúde e
educação? As balas continuarão sendo de borracha? Pensemos sobre isso. Afinal,
vemos, ouvimos e lemos. Não podemos ignorar...
Cantata da paz
"Vemos,
ouvimos e lemos.
Não podemo
ignorar!Vemos, ouvimos e lemos
Relatórios da fome
O caminho da injustiça
A linguagem do terror
(...)
Nada pode apagar
O concerto dos gritos
O nosso tempo é
Pecado organizado
Sofia de
Mello Breyner
(1919-2004)