quarta-feira, 9 de março de 2011

Nas ruas, máquinas é que são protagonistas

Quarta, 9 de março de 2011, 07h51

O atropelamento de dezesseis ciclistas por um motorista no Rio Grande do Sul é mais do que um episódio grotesco do direito penal.

É certo que tivemos nele condimentos típicos de um crime classe média: a fuga do agente, apresentando-se no dia seguinte, quando cessada a flagrância e a internação em uma clínica às vésperas da decretação da prisão.

Mas independente da repetição de um roteiro, ou da superveniência de alguma variável no processo, é forçoso concluir que o evento não pode ser compreendido exclusivamente na esfera da criminalidade.

Os ciclistas estavam justamente fazendo uma manifestação pelo direito de andar de bicicleta pelas ruas de Porto Alegre, denunciando as precárias condições para isso. A "Massa Crítica", que questiona a ocupação dos espaços pelo automóvel, acabou por provar seu corolário à custa de sangue e lágrimas.

A singularidade da situação pode não ter muitos antecedentes - quiçá as impactantes imagens previnam sucessores. Mas a reclamação dos gaúchos é de uma procedência que transcende seus limites. As cidades brasileiras são formatadas preferencialmente para os automóveis, não para os cidadãos.
Durante a Olimpíada de Pequim, o mundo pôde assistir constrangido à contradição da celebração máxima do esporte, na cidade mais poluída do planeta.

Soube-se também que a imagem que se tornara marca célebre do oriente, de milhares e milhares de bicicletas tomando as ruas, estava fadada ao esquecimento: o trânsito de automóveis na modernizada China afugenta e amedronta ciclistas.

Em algumas metrópoles brasileiras, tem-se construído ciclovias. Mas o objetivo é, sobretudo, proporcionar lazer à classe média, com espaços em áreas nobres que se fecham aos carros nos finais de semana.

No dia-a-dia, a concorrência do automóvel continua desleal. Mesmo que a necessidade de reduzir emissões de carbono nos aponte para o sentido contrário. No trânsito, nós gostamos de caminhar na contramão.

Em busca de espaços e mais espaços para os veículos, que vitaminam a indústria automobilística de matriz estrangeira, e a publicidade nos meios de comunicação, o país já havia deixado de construir estradas de ferro, e atrasou o quanto pôde os trens urbanos.

Para uma cidade do tamanho de São Paulo, o total de linhas de metrô é irrisório se comparadas com outras metrópoles. O problema nem é a pujança da economia, pois a aquisição de carros de passeio no Brasil está entre as maiores do mundo.

É uma questão de prioridades.

No trânsito, o carro tem a preferência sobre o ciclista e mais ainda sobre o pedestre, que deve ser uma espécie de atleta olímpico para atravessar as ruas entre semáforos fugidios. Enquanto se constroem mais e mais viadutos e minguados corredores de ônibus, o transporte coletivo segue sacrificado - afinal, é apenas um único veículo para quase uma centenas de almas.

A única mudança visível da última década e meia tem sido a ocupação dos mínimos espaços entre os automóveis por uma verdadeira infestação de motocicletas, tornando as travessias de pedestres ainda mais perigosas. Nem é preciso dizer o quanto os acidentes fatais se multiplicaram.

Desde que o ex-presidente FHC vetou no Código de Trânsito a proibição do tráfego nos corredores dos veículos (alegando que era a única vantagem das motos), aumentou exponencialmente o uso e mais ainda a destruição destes veículos de duas rodas.

Criou-se uma cultura de desenfreada costura, na qual o menor espaço entre dois veículos tende sempre a ser ocupado por uma motocicleta.

Diversamente dos ciclistas, os motoqueiros profissionais do cotidiano usam as duas rodas como pequenos carros, buscando atingir uma velocidade e praticidade incomuns, e têm se notabilizado por uma direção extremamente agressiva.

Ninguém que ouse se colocar à sua frente, ou se tornar um obstáculo para os inusitados caminhos cortados. No violento trânsito, passa quem pode, deixa quem tem juízo.

Se sofremos as conseqüências, é preciso também reconhecer o quanto participamos das causas. O conforto de ter nossos produtos chegando em casa com rapidez acabou gerando uma espécie de revolução industrial nas entregas.

Motoqueiros trabalham como se fossem autônomos. Não têm direitos trabalhistas, devem comprar e manter suas próprias motos, e precisam trabalhar sem limite de horários para tornar os ganhos compatíveis. Sem horas extras ou fundo de garantia, vivem a vida louca, mesmo que breve.

Motoristas engarrafados, motoboys estressados; pedestres intimidados, ciclistas encurralados. Passageiros do transporte coletivo como sardinhas em lata.

A mistura da ganância, ansiedade e desrespeito não pode mesmo produzir resultados muito alentadores, ainda que os absurdos de Porto Alegre não se expliquem nem se justifiquem pelos desvarios do trânsito.

Que as vítimas da "Massa Crítica" não tenham sofrido em vão.

Que sirva ao menos para nos alertar do desajuste que vimos provocando: nas ruas brasileiras, a máquina é o protagonista; o cidadão, um mero ator coadjuvante.

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Marcelo Semer é Juiz de Direito em São Paulo. Foi presidente da Associação Juízes para a Democracia. Coordenador de "Direitos Humanos: essência do Direito do Trabalho" (LTr) e autor de "Crime Impossível" (Malheiros) e do romance "Certas Canções" (7 Letras). Responsável pelo Blog Sem Juízo.

Fale com Marcelo Semer: marcelo_semer@terra.com.br

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